A pandemia Covid-19 teve uma vítima insuspeita em Portugal, que foram os próprios hospitais. Não me refiro aqui aos milhares de casos de terapêuticas administradas, pela falta inicial de recursos para uma situação de emergência desta natureza, nem pelo esforço quase sobre-humano e verdadeiro heroísmo dos profissionais de saúde. Refiro-me sim à situação de emergência que fez com que metade dos hospitais nacionais caíssem numa situação de ilegalidade desde 18 de abril no que à faturação eletrónica diz respeito.
A fatura eletrónica com a administração pública é obrigatória, desde 18 de abril de 2019, para os serviços da administração direta do Estado e os institutos públicos. Estes organismos estão obrigados a utilizá-las em exclusivo após a publicação do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, que transpôs a Diretiva Europeia 2014/55/EU. A legislação tornou obrigatória a emissão de faturas eletrónicas para empresas que trabalham com organismos públicos, promovendo assim a transformação digital.
O Decreto-Lei n.º 123/2018 definiu os prazos legais e estabeleceu até 18 de abril de 2020 para restantes organismos públicos e entidades administrativas independentes que não estavam abrangidos pela primeira fase, até 17 de abril de 2020 para as grandes empresas, e até 31 de dezembro de 2020 para as micro, pequenas e médias empresas
No entanto, o Decreto-Lei n.º 14-A/2020, de 7 de abril, no âmbito das medidas excecionais aprovadas no contexto de pandemia da doença COVID-19 veio – e oportunamente, na nossa opinião – alterar os prazos estabelecidos pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 123/2018, de 28 de dezembro, passando os fornecedores da Administração Pública a ser obrigados a emitir faturas eletrónicas, a partir de 1 de janeiro de 2021, 1 de julho de 2021 e 1 de janeiro de 2022, consoante sejam grandes, pequenas e médias ou microempresas e entidades públicas enquanto entidades cocontratantes, respetivamente.
Dito de outra forma, nada mudou na calendarização da obrigatoriedade de adoção para os hospitais públicos de implementar sistemas de faturação eletrónica a partir de 18 de abril, estando em incumprimento legal desde então todas as unidades que ainda não o fizeram.
Pelo que constato diariamente, até ao início de abril, o número de entidades de saúde pública que tinha já implementado procedimentos de faturação eletrónica ultrapassava em pouco a centena. Ou seja, cerca de metade do total de hospitais públicos. O quadro de pandemia e a produção legislativa vieram atrasar um processo que já conhecia demoras em várias unidades, com o Decreto-Lei nº 14-A/2020 de 7 de abril a ser frequentemente mal interpretado e utilizado por entidades públicas como argumento para iludir a situação – grave, a meu ver – de incumprimento em que estão há cerca de dois meses. Se os hospitais públicos eram das entidades mais atrasadas na implementação da faturação eletrónica em toda a Administração Pública, a emergência nacional causada pela pandemia veio piorar esta situação ainda mais, com a agravante de cerca de metade do total estar já a infringir a lei.
Esta é uma situação quase caricata quando a grande maioria do ecossistema de fornecedores dos hospitais públicos se preparou de forma séria e completa para a entrada em vigor da faturação eletrónica em abril, encontrando-se as farmacêuticas e empresas de dispositivos médicos já a faturar eletronicamente às entidades que têm essa exigência legal, mas que não cumprem.
Artigo de opinião publicado na página 52 da 20ª edição da revista Gestão Hospitalar, a 02/07/2018.